quarta-feira, 17 de junho de 2009

Ceci n'est pas une biographie

Uma das obras de arte mais comentadas do século XX é, sem dúvida, o quadro La trahison des images (1926), do pintor surrealista belga René Magritte (1898 - 1967), que apresenta um cachimbo desenhado cuidadosamente e, por baixo, com uma caligrafia regular, a frase: "ceci n’est pas un pipe".

À primeira vista, o quadro é de leitura simples. Parece saído de um qualquer livro para crianças, com uma figura e o texto que a nomeia. O objecto representado é facilmente reconhecido: um cachimbo. No entanto, numa segunda leitura, percebe-se que a frase nega a “identidade” desse mesmo objecto impresso na tela: “isto não é um cachimbo”. Este efeito parece estabelecer uma afirmação da negação daquilo que a “coisa representada” aparenta ser.

Numa troca de missivas entre o pintor belga e o filósofo francês Michel Foucault (1926 – 1984), iniciada pelo primeiro em meados da década de 1960, Magritte enviou uma reprodução desse mesmo quadro a Foucault e, no verso, escreveu: “O título não contradiz o desenho. Afirma-o de outro modo”. De facto, se, por baixo do desenho, estivesse a frase “isto é um cachimbo”, estariamos perante uma preposição falsa já que, como é óbvio, o desenho de um cachimbo não é um cachimbo. E, a própria palavra “cachimbo” também não é um cachimbo.

Para o espectador, parece inevitável relacionar o texto com o desenho. O estilo demonstrativo e realista da figura, e o sentido da palavra “cachimbo” convidam-nos a fazê-lo. No entanto, o que está impresso na tela é apenas um conjunto de marcas feitas à mão, com um pincel embebido em tinta. Não houve, nem nunca haverá um cachimbo acompanhado por uma afirmação ou negação quaisquer. O quadro de Magritte é apenas uma imagem pintada. Um conjunto de símbolos, dispostos sobre uma tela para produzirem um efeito. E, assim, a relação que se pode estabelecer entre a frase pintada e o desenho, apenas afirma o próprio sentido ontológico da arte.

Com o projecto teatral que agora iniciamos, debatemo-nos com um conjunto de questões. Algumas delas, importantes para a orientação do próprio projecto e para a melhor definição dos objectivos a que, com ele, nos propomos alcançar. Questões (também) ligadas com o sentido da arte (teatral ou não) e os mecanismos de representação.

Durante a minha infância, em casa dos meus pais, cruzei-me, por diversas vezes, com um livro que tinha o seguinte título: "Grandes Vidas, Grandes Obras - Biografias Famosas". No interior desse enorme livro (parecia-me bem maior naquela altura), havia uma frase de Thomas Carlyle, que dizia o seguinte: "Nenhum grande Homem vive em vão. A história da Humanidade não é mais do que a biografia dos grandes Homens". Naquela altura, tudo aquilo me fascinava. Aquela frase. Todo o livro. Agora, parece-me um conceito completamente errado, perdoe-me o historiador escocês. "Nenhum Homem vive em vão. A história da Humanidade é feita da biografia de todos nós", proponho eu, tentando salvar algo do naufrágio. A História está a ser construída neste preciso momento e, para ela, todos contribuímos, independentemente do nosso "tamanho".

Para este novo projecto do teatromosca, enquanto concebiamos, em traços gerais, o que seriam os seus objectivos e procurávamos um nome que melhor o identificasse, a Susana, perspicaz, sugeriu o título "Retratinhos". Nada melhor. O termo "biografia" não nos agradava. De modo algum, servia os propósitos do projecto. Não tinhamos a intenção de narrar (mimetizar) a vida de alguém. Não era nossa intenção contar a história da vida de uma pessoa. Isso não é possível num espectáculo de teatro. Em nenhuma obra artística.

Da mesma forma que aquele que observa o quadro de Magritte tende a relacionar o que está representado com a frase inscrita por baixo do desenho, também, no caso do projecto "Retratinhos", o espectador poderá deixar-se levar (ou ser levado) a pensar que se tratam de biografias - narrações de espisódios da vida de uma pessoa, que, de forma bem documentada e historicamente sustentada, procuram traçar um percurso da existência real do biografado.

No entanto, trata-se de um gesto artístico, criativo, livre e contaminado por códigos artísticos, que, bem documentado e também historicamente sustentado, faz uma aproximação ao real e, simultaneamente, se apresenta como ficção, sempre pronto para negar aquilo que aparenta ser. São representações artísticas de uma pessoa, como uma pintura ou uma fotografia. Não é o Fernando Lopes-Graça ou o Charles Darwin ou a Paula Rego, o que está em cena... São retratos, objectos artísticos, obras de arte, espectáculos teatrais, orientados (não só) para o público infanto-juvenil (e sobre isto abriremos uma outra discussão mais adiante), tendo bem presente aquilo que Fernando Lopes-Graça afirmava: "O biógrafo arrisca-se sempre a fantasiar no ar". E o que é a História, senão a ordenação, mais ou menos, lógica e encadeada de um conjunto de narrações, também elas, possivelmente fantasiadas?

Pedro Alves, teatromosca

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