quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O lugar do texto - texto de apoio Formação

O LUGAR DO TEXTO
Nos anos 1960/1970, aquilo a que podemos chamar “revolução artística” derrubou (não só) alguns dos alicerces da visão logocêntrica do teatro e (podemos dizê-lo também) das artes performativas. Na era da performance, do happening, da instalação, dos cruzamentos disciplinares, da multidisciplinaridade e da hibridez, o texto perdeu o lugar central, privilegiado, e cedeu algum espaço a outros materiais artísticos: a luz, o som, o movimento, o espaço e o próprio intérprete. Destronado o texto e esbatidas as hierarquias, os vários intervenientes e constituintes do processo criativo poderiam ocupar o mesmo espaço e ter o mesmo peso no acto performativo, caminhando para uma democratização do processo criativo.

O material literário (texto dramático, conto, poesia, texto narrativo, etc.) não tem que ser, obrigatoriamente, o ponto de partida para um processo teatral. Tal como não é imperativo que no “resultado final”, o poder da palavra se sobreponha ao das imagens, da música, do movimento ou da iluminação.

Porém, neste projecto do teatromosca e para esta acção de formação, em específico, partimos do texto. Partimos de textos. É com a palavra escrita que iniciamos o nosso processo. Não é uma proposta anti-texto. O objectivo não é o mesmo que no devised theatre, em que, para o processo, se parte de qualquer material, excepto do texto. Nada disso. Não apagamos a literatura do processo e, inclusivamente, é com ela que damos início ao nosso trabalho. Contudo, à semelhança do que foi uma das conquistas das novas práticas e teorias da arte da segunda metade do século XX, não precisamos de terminar na palavra declamada. Ou, também, a palavra dita pelos intérpretes não tem, necessariamente, que ser a mesma que foi escrita (pelo autor).

Não se trata de aniquilar o papel do escritor (o Autor) com o objectivo de libertar as artes performativas de uma “tirânica” perspectiva única – do texto. Trata-se de assumir o texto como matéria maleável, susceptível de ser transformada, adaptada. Esse material literário vê-se desobrigado da sua autoria intocável, passando a ser apropriado por outras vozes que projectam nele a sua visão e a sua leitura. Nesse trabalho de adaptação, actualização, re-interpretação, o Autor deixa de governar e o seu lugar é tomado por outros autores.


LUGAR À PERFORMATIVIDADE
A performance e restantes manifestações artísticas pós-dramáticas não deixaram, no entanto, de se servir do material literário nas suas criações e nos seus processos. Na dança contemporânea, contaminada por outros códigos artísticos, os bailarinos apoderaram-se da palavra como material do corpo e meio de exploração de limites. No teatro, depois de Brecht (anos 1930–1950) e das actualizações/ adaptações de textos clássicos, depois das performances revolucionárias dos anos 1960 e 1970, o texto nas artes performativas acabou por sobreviver ao século XX. «Ainda bem», não resisto a desabafar.

No final do século passado e início deste novo milénio, uma das práticas recuperadas e que se tem vindo a difundir significativamente, por diversas razões, tem sido a leitura encenada. Leitura encenada. Leitura dramatizada. Não nos vamos deter muito mais na terminologia. Interessará apresentar uma abreviada definição do conceito de leitura encenada.

De forma resumida, podemos dizer que se trata de uma leitura em que os actores ou não-actores lêem um texto em voz alta, com o mínimo de movimentação. Essa leitura poderá decorrer em espaços convencionais de teatro ou em espaços não convencionais (bibliotecas, escolas, bares, espaços ao ar-livre, etc.). No decorrer do processo de ensaios para um espectáculo, a leitura dramatizada pode ser entendida como um género intermediário entre a leitura de um texto e a sua espacialização ou encenação. Poderá também ser autonomizada e apresentada publicamente assumindo-se como performance (na medida em que se trata de uma manifestação artística, efémera e não-reproduzível, mas já/ ainda não se podendo designar como representação teatral). Essa leitura dramatizada poderá também não sair da esfera privada de uma leitura individualizada e servir apenas o prazer da leitura solitária (mas, se ao leitor juntarmos alguns ouvintes, aí poderemos entrar numa longa discussão ontológica sobre o Teatro).

Isolo alguns termos aplicados no texto até agora, para apontar numa única direcção:
“Não-actores”;
“Não-convencionais”;
“Encenação”;
“Prazer da leitura”.

Estes quatro termos servem-me agora para defender o que trabalharemos nesta formação. E, isoladas as palavras, elas servem-me de guião, conduzindo-me facilmente para a conclusão deste meu texto. Completo: Não se pretende formar actores ou transformar em actores aqueles que não o são (falamos da profissão de actor). O teatro já nos mostrou, demasiadas vezes para que insistamos no contrário, que para que se realize um bom espectáculo não precisamos de actores de profissão. Também não precisamos de um espaço convencional (uma sala de aula, um corredor de biblioteca, um quarto de uma casa particular, servem muito bem). A encenação não deve ser confundida com a marcação e não se pode traduzir apenas no desenho de marcações. A marcação é uma etapa na elaboração da encenação e fixa as deslocações e as posições dos actores no espaço cénico. A encenação coloca em cena. A marcação coloca num lugar e delimita uma área de actuação precisa. Por fim, o que nos interessa (re)descobrir é, precisamente, o prazer da leitura de um texto em voz alta (para uma plateia ou em privado).


Pedro Alves
Director artístico do teatromosca

Sem comentários: